quarta-feira, 8 de junho de 2016

DE SÃO PAULO A PORTO ALEGRE DE TREM - EM 1935

http://blogdogiesbrecht.blogspot.com.br/2015_06_01_archive.html



Trem de passageiros em Uruguai, SC, a poucos quilômetros de Marcelino Ramos, anos 1950 (Acervo Joeli Laba).
Depois da “reorganização” da Brazil Railway em 1918/1920, as ferrovias entre São Paulo e Porto Alegre passaram a ter administrações independentes e proprietários diferentes. O artigo abaixo, publicado em diversos jornais do Brasil com o nome de “O Senso da Velocidade” em outubro de 1935 e escrito por Sud Mennucci, meu avô, que viajou por essa linha nessa época para atender à Exposição Comemorativa dos 100 anos da Guerra dos Farrapos, em Porto Alegre, mostra uma crítica severa ao sistema que nesse momento era gerido por três ferrovias diferentes – a Sorocabana, a RVPSC e a VFRGS. Basta ler um detalhe do texto sobre a viagem de automóvel de Sud de Florianópolis a São Paulo, passando por Curitiba, dois anos antes (1933):


“Uma vez em Curitiba, esperava-me o meu Fordinho, que viera de São Paulo no mesmo dia da minha chegada. Estava resolvido que iríamos a São Paulo de auto, para encurtar a viagem”.


Ou seja, em 1933, já era mais rápido ir de Curitiba para São Paulo pelas péssimas estradas de rodagem de então, do que pelo trem. Além do mais, eram comuns as viagens interrompidas devido a enormes pinheiros que caíam sobre a linha na hora da derrubada pelas madeireiras, sempre próximas à linha. A retirada podia demorar horas. Na verdade, a duração da viagem tanto criticada pelo autor jamais foi reduzida substancialmente, pois as paradas continuaram sendo muitas e a linha, quando teve uma alternativa de trajeto mais de 30 anos mais tarde, jamais transportou passageiros – o Tronco Sul de 1969.


Abaixo, o texto de Sud em 1935.


“Civilização e velocidade são hoje sinônimos. Desde Marinetti, no seu célebre manifesto de 1909, ninguém mais põe em dúvida, em nossos dias, que a característica fundamental da civilização é o senso da velocidade das massas. E pode dizer-se, sem intuito de fazer paradoxo, que a civilização de um povo é diretamente proporcional ao seu sentido de velocidade nas relações humanas. Diz-se que esse conceito partiu da verificação inglesa de que “tempo é dinheiro”.


(...) Um exame, mesmo superficial, do Brasil, quanto à sua aquisição deste sentido moderno, revela-nos que andamos com o nosso relógio muito atrasado. A não ser São Paulo e o Rio de Janeiro, em que a preocupação da rapidez já se insinuou até entre as mais baixas camadas sociais, tudo o mais está fora da regra universal. Em São Paulo esse aspecto constata-se na luta entre a estrada de ferro e a de rodagem. (...) Ainda agora, a mais poderosa empresa ferroviária do Estado, a mais bem organizada do País e talvez da América do Sul, a Companhia Paulista, está modificando toda a superestrutura de sua via permanente entre Jundiaí e Rincão (286 km de linha eletrificada) para fazer com que os seus trens corram, em média, 100 km horários, de maneira que dentro em breve se possa ir em pouco mais de três horas de São Paulo a Araraquara.


(...) E no resto do Brasil? (...) Tornou-se patente o fenômeno ainda recentemente, com a inauguração da Exposição Farroupilha. Muita gente de São Paulo desejou ir à terra gaúcha tomar parte nos festejos comemorativos da maior guerra interna que o Brasil teve e muita gente desistiu diante do tamanho da viagem ferroviária. Alegar-se-á que restavam outros dois recursos: o mar e o aeroplano. Contudo, as passagens estavam tomadas e havia a maior dificuldade em conseguir lugar. O avião ainda é artigo de luxo em nosso País, que custa quatro vezes mais que o transporte por estrada de ferro. A solução mais fácil e mais cômoda economicamente era, portanto, a do trem de ferro. Entretanto, a viagem assustou inúmera gente.


(...) Porque é impossível imaginar, entre São Paulo e Porto Alegre, uma viagem mais lenta, mais descansada, mais carro-de-boi... Examinemo-la sem pressa. De São Paulo a Porto Alegre há 2.216 km de linha férrea, compreendendo três estradas diferentes: a Sorocabana; a São Paulo-Rio Grande e a Viação Gaúcha. O primeiro trecho é de 409 km; o segundo, de 884 km; o terceiro de 923 km. Tempo de trajeto normal, 88 horas. Quer dizer, sai um cidadão de sua casa às 16 horas de um sábado, na Paulicéia, para chegar a Porto Alegre às 8 da manhã de quarta-feira. Isso dá uma média de 25 km por hora (...) As máquinas são boas e podem fazer, sem esforço, 35 km horários. E isso reduziria a viagem a cerca de 64 horas, ganhando, portanto, 14.


Quais são esses motivos? O primeiro e mais importante é o vício das paradas dos trens. Os comboios, apesar de se destinarem a uma tão longa viagem, não conduzem, inexplicavelmente, o carro-restaurante. A não ser de São Paulo a Itapetininga e num trecho do Rio Grande do Sul, os trens viajam sem esse já hoje indispensável elemento de conforto. Resultado: de cinco em cinco horas, o trem para meia hora para alimentar os passageiros. Depois, em Marcelino Ramos, nas divisas do Rio Grande, demora-se mais de seis horas; em Passo Fundo, mais de uma hora; em Santa Maria, mais de duas. Tudo somado, há uma perda de treze horas de trajeto. (...) Subtraiam-se essas treze horas do total de oitenta e oito horas e teremos que, sem a menor dificuldade, sem a menor reforma, bastando apenas anexar um carro-restaurante aos trens e eliminar as paradas, já se poderia fazer a viagem em 75 horas.


Mas para isso, seria mister que existisse nos homens, tanto nos da direção das estradas de ferro, como na massa da população que viaja, “o sentido da velocidade”. E é esse que falta. Setenta e cinco horas de viagem para 2.216 km de distância, contudo, não elevam a média horária nem mesmo a 30 km. E como no trecho paulista (São Paulo-Itararé) a média é de 35 km, ficaria para o resto uma velocidade de 28 km por hora. (...) De Itararé em diante, até Santa Maria da Boca do Monte, o trem para em todas as estações, por insignificantes que sejam. (...) E em trens de grandes percursos, como esse, as paradas precisam ser reduzidas ao mínimo, só para as grandes cidades, a fim de que a locomotiva tenha espaço para desenvolver toda a sua potência. (...) Suprimidas as paradas dispensáveis, a fim de elevar a velocidade média horária a 35 km, o trajeto poderia ser realizado em 63 ou 64 horas, ganhando-se, portanto, um dia de viagem sobre o atual, e sem fazer modificação nenhuma de caráter extraordinário, que implicasse em gastos ou em ônus para as estradas de ferro.


Porque, se as estradas quisessem enveredar pelo caminho das obras e gastar de verdade, no intuito de reduzir a distância e o tempo, pode assegurar-se que a viagem São Paulo-Porto Alegre, mesmo na estrada de ferro da bitola de um metro, é passível de realizar-se em dois dias. (...) É um verdadeiro absurdo que entre São Paulo e Porto Alegre se haja estendido uma linha férrea com 2.200 quilômetros de comprimento, quando esse mesmo traçado, tocando nos mesmos pontos terminais dos Estados em que toca hoje (São Paulo – Itararé – Porto União – Marcelino Ramos – Porto Alegre) de pouco ultrapassará 1000 quilômetros. A linha atual é, portanto, mais do dobro da linha reta.


(...) Para dar uma idéia do que foi o traçado da São Paulo – Rio Grande basta citar alguns exemplos frisantes: de Itararé a Jaguariaíva, a distância, em linha reta, é de 40 quilômetros. Admitindo-se os 20 por cento adicionais que as estradas de ferro precisam para o seu desenvolvimento, teríamos, no máximo, um trecho de 50 quilômetros. Pois a ligação tem apenas 98, isto é, o dobro! Entre Jaguariaíva e Castro, há, em reta, pouco mais de 50 quilômetros. Com os 20 por cento adicionais, teríamos, no máximo, 65. Pois o traçado achou jeito de chegar a quase 100.


Entre Porto União e Marcelino Ramos, isto é, entre o rio Iguaçu e o rio Uruguai, a distância é de 160 quilômetros, que dariam um máximo de 200 de extensão férrea. Pois há nada menos de 368 quilômetros. (...) A linha férrea segue religiosamente as cotas de nível do terreno e serpenteia ao sabor das elevações e das colinas, procurando sempre o caminho de menor resistência para evitar a construção dos viadutos, cortes e aterros e outras obras de arte. Conta-se que o Presidente Penna, ao inaugurar o trecho Itararé-Jaguariaíva, viajava na frente da locomotiva. Ao verificar uma série de curvas seguidas e muito próximas umas das outras, em terreno relativamente chato, indagou se havia alguma outra estrada de ferro em construção, tal a direção que a linha tomava em certos pontos, completamente contrária àquela que a locomotiva estava fazendo. Responderam-lhe que não e que o trem iria passar sobre os trilhos que ele estava vendo. O presidente sorriu. – Eu sou apenas um bacharel – acrescentou – mas parece-me que essas curvas são perfeitamente dispensáveis aqui, onde não se vê a necessidade de ganhar elevação. Enfim... os técnicos são os senhores...


(...) No caso presente, do encurtamento da linha São Paulo-Porto Alegre, a curva maior, contudo, é a que fica além de Marcelino Ramos. Desta estação à Capital gaúcha, adotou-se como trajeto o caminho mais estranho que se podia. (...) O caminho mais curto para ir a Porto Alegre seria o de Passo Fundo a Montenegro, mas a estrada preferiu o outro e deu a volta (...) E essa volta tem um comprimento total de 923 quilômetros, quando o outro caminho poderia ter, com toda condescendência, no máximo 500 quilômetros, como vamos demonstrar. (...) Se no trecho Itararé-Marcelino Ramos que, como vimos, tem 884 quilômetros, a supressão das curvas não fosse além dos 250 quilômetros, embora a distância em reta não chegue a 450 quilômetros, concluiríamos que o comprimento da linha São Paulo-Porto Alegre não iria além do seguinte: São Paulo-Itararé, 409; Itararé-Marcelino Ramos, 634; Marcelino Ramos-Porto Alegre, 504; total, 1.547. Com a velocidade horária de 35 quilômetros pode fazer-se o trajeto em 48 horas folgadas.


(...) O Brasil, desgraçadamente, é ainda um país cru.”

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